Jiyuu na Karada: O Corpo Liberto - Capítulo 44
Cinco meses depois.
Jiro Saito limpou o balcão com um pano úmido antes de colocar sobre ele as xícaras empilhadas. À sua frente, o velho e antigo cliente de Mamoru, Watanabe, bebia e lia silenciosamente, sentado sobre uma confortável poltrona, ao lado da janela.
Alguns meses antes, ele se demitiu do emprego no exército e assumiu a livraria de Aiko. Mudaram o nome para evitar qualquer incidente com os poucos milicianos que ainda restavam livres e organizaram um novo estabelecimento financiado por Ryo Satoshi.
Jamais pensou em se tornar um comerciante, mas virar sócio de Mamoru lhe tirou da melancolia que entrou após a prisão de Shin.
Quase na mesma época, um novo morador ocupou o lugar de Minikui no local. Kirei era tão bonito como seu nome. Branco, de pelos longos e de personalidade gentil, foi resgatado por Jiro num dia chuvoso, enquanto voltava para casa, após uma noite de bebedeira.
De certa forma, entendera, naquele instante, a importância de um amigo não humano. E, depois daquilo, seus dias passaram longe dos bares e muito perto de brincadeiras com cordões com o gato abandonado.
A porta bateu e ele sorriu para o entregador. Indicando com a face os fundos do local, seguiu com o homem, e o viu deixando lá a caixa com os novos clássicos que chegavam, comprados de uma editora local.
Estava na moda ler cultura ocidental, e ele sorriu diante dos títulos. Quando o homem afastou-se, ele se agachou ao lado da caixa, abriu-a e começou a organizar a mercadoria nas estantes bonitas.
O sino da porta tocou novamente.
— Já estou indo! — gritou, anunciando ao novo cliente a sua localização.
Largando os volumes no chão, ele voltou ao balcão, sorrindo, ansioso por agradar.
— Daniel?
Contudo, sua animação logo tomou lugar ao assombro. Era impossível esconder o espanto. Fazia muito tempo que eles não se viam. Aliás, desde o dia que o encontrou ao lado do antigo amor, não soube nada mais dele.
— Procurei você em Kyoto — o americano contou, aproximando-se do balcão. — Achei que houvesse voltado para lá.
— Eu pedi demissão.
— É — o outro assentiu. — Me disseram isso.
Houve um silêncio estranho. Jiro contorceu as mãos no pano do balcão, ansioso.
— Eu solicitei dispensa — o rapaz contou, puxando a franja para trás da orelha. — Não foi difícil, eu já havia cumprido o tempo obrigatório. Então…
— Vai voltar para os Estados Unidos? — Jiro o interrompeu.
Aquilo era uma despedida? Ficou feliz por Daniel ter tido o trabalho de tê-lo procurado para dizer adeus.
— Não, eu ficarei em Tóquio — negou.
Saito sorriu, escondendo um traço de dor. Sabia o que aquilo significava.
— Você e Ren vão viver juntos?
— Eu amei muito Ren, Jiro — o outro afirmou, sem pestanejar. — O primeiro amor mais puro que um homem pode ter. Mas o tempo me mudou. O tempo o mudou também. A vida é assim. O que parecia tão forte e grandioso aos olhos da juventude, não é mais capaz de me fazer mover os céus e a terra em nome de tal paixão. Você compreende?
Saito assentiu.
— A vida tem esse dom — Jiro amenizou. — Ela sempre nos mostra que o que muitas vezes nós acreditamos ser indispensável e absoluto, não é assim tão importante.
Daniel concordou.
— Como está?
— Estou bem — Jiro sorriu, simpático. — Como pode ver — abriu os braços, mostrando o local. — Assumi o posto de Aiko. Estou morando no andar de cima.
— E ele?
— Mamoru mora na casa de Sakamoto.
— Shin ainda está preso, não é?
— Será solto essa semana — Jiro contou, apesar da informação ser sigilosa. — Sua prisão havia sido prévia, e a investigação apontará que Oguri tentou armar uma emboscada na sede do novo governo, e que Sakamoto o impediu.
Daniel Joshua soltou uma gargalhada irônica.
— E como vocês ficarão?
Saito arqueou as sobrancelhas, não entendendo.
— Aiko, Shin e você? Viverão um triângulo amoroso?
Saito olhou de soslaio para o cliente lendo à janela. Ao percebê-lo completamente focado em sua leitura, respondeu.
— Nunca fomos isso — Jiro se defendeu. — Acho que, no fundo, eu apenas confundi o amor excessivo que tenho por eles com paixão. Mamoru também. Solitário e carente, não pensou duas vezes em se jogar para mim. Mas, na verdade, nós três sabemos que eu sempre sobrei nessa história.
Daniel enfiou as mãos no bolso. Parecia apreensivo.
— Está sozinho, então? — indagou.
Por algum motivo, o coração de Saito Jiro disparou diante da questão.
— Talvez.
— Talvez? — estranhou a resposta.
— Você está?
O sorriso lindo surgiu nos lábios do americano. Ele confirmou com a face.
— Desde que eu o conheci, sempre pertenci a você — confessou, baixinho, como se temesse uma nova rejeição.
O sorriso mais lindo do mundo se abriu diante do americano.
— Acho que ninguém mais no mundo me amou de forma tão incondicional quanto você — Jiro afirmou. — E eu demorei muito a entender isso. Assim, me perguntava se haveria, um dia, uma oportunidade de eu fazer as coisas de forma diferente.
Daniel abriu os braços, deixando-se à disposição. Saito riu.
— Quer jantar comigo?
Jiro assentiu.
— Posso preparar algo.
— Não, não aqui — Daniel negou. — Vamos jantar fora e depois caminhar olhando as estrelas. Eu comecei meu antigo relacionamento com você bêbado e caindo na sua cama como um idiota. Agora, quero que saiba que está diante de um homem sério, e por isso exijo seriedade em nossos atos. Primeiro, jantar, passear, namorar. Depois, compromisso. Por último — aproximou-se, quase encostando os lábios em seu ouvido — sexo.
Jiro gargalhou.
— Eu vou ter que esperar tanto tempo assim?
— Vai sim — o americano afirmou. — Porque quando acontecer, será especial.
Depois de um leve beijo na têmpora, Daniel saiu, deixando para trás um Saito muito satisfeito.
À janela, outra pessoa gostou do que presenciou. Watanabe-san mal podia esperar para contar a novidade ao chefe, Sakamoto. Sabia, de antemão, que o patrão ficaria feliz. Nada podia importar mais para o membro da família imperial que a felicidade do melhor amigo.
***
Shin Sakamoto fechou os olhos, suspirando, feliz, ao sentir o calor do sol acariciá-lo. O vento da liberdade bateu em seu rosto e ele riu, extasiado com o simples fato de que estava livre daquela cela, sua companheira nos últimos meses.
Olhou adiante. Aiko estava parado próximo, sorrindo em sua direção. Devolveu o sorriso, enquanto corria até ele. Sequer mediu seus atos, quando o pegou no colo, e o girou nos braços, num abraço feliz.
Pareciam duas crianças, mas logo voltaram à antiga compostura, afinal de contas, não o eram. Só então notou a menina próxima deles, sorrindo.
Agachou-se e recebeu aquele outro abraço, diferente do anterior, mais gentil e fraterno.
— Eu senti sua falta, Príncipe — ela disse, apertando-o o máximo que podia com os pequenos braços.
— Eu também, minha querida — ele murmurou, afastando-se. — Onde está seu pai?
— Ryo está trabalhando e Shiromiya ficou em Sapporo— Aiko respondeu por ela. — Eu busquei Miya ontem, para recebê-lo. Sabia que sentiam saudades um do outro.
— E Jiro?
— Trabalhando também.
Shin se ergueu, abrindo os braços dramaticamente.
— Eu saí da prisão e nenhum dos meus amigos está aqui para me ver? Eu sou um herói nacional! — fez referência a como o jornal o chamou, naquela manhã.
— Você é uma fraude e eles têm que trabalhar — Aiko riu. — Mas estou aqui — aproximou-se, ansioso para beijá-lo. — Não basto?
Shin riu. Mamoru era tudo que ele precisava.
***
A pedra em formato oval marcava o local onde seu amigo estava enterrado. Shin mexeu com o dedo na terra, já firme, enquanto percebia a relva crescendo.
— Minikui foi o melhor gato que já existiu no nosso planeta — ele apontou.
Miya, ao seu lado, agachou-se, também tocando a terra.
— É muito triste, não é?
— É sim — Shin confirmou. — Mas sabe? — encarou-a. — Enquanto viveu, nunca lhe faltou afago, comida, água, cama quente e amor. Então, eu sei que ele foi muito feliz e isso, de certa forma, é algo que acalma a tristeza.
Miya repousou a cabeça no ombro do melhor amigo.
— Terei muitos gatos, Miya. E para todos vou dar todo o amor do mundo. Assim, não haverá arrependimentos quando eles partirem — respirou fundo. — Lembre-se sempre, enquanto as pessoas e os animais viverem, sempre haverá tempo para perdão, amor e fraternidade. Busque isso. Depois que partem, não existe mais nenhuma possibilidade. Não poderá mais pedir desculpas por um erro ou confessar um amor escondido.
Ela assentiu.
— Sim, tio.
Ele a encarou, surpreso.
— Tio?
— Príncipe — corrigiu-se.
— Eu gostei de tio — ele avisou. — Gostei… — ratificou. — Me chame assim, a partir de agora.
Ela sorriu, concordando. Depois disso, voltaram para casa, para comerem o lanche que Mamoru organizou. Era o início de uma vida familiar que traria muita felicidade para ele.
***
Shiro não gostou de deixar Miya viajar sozinha. Contudo, o convite partira de Aiko e ele não soube como recusar. Até porque, reconhecia, era importante para ela adquirir independência, ver e viver coisas além daquelas que ele fornecia.
Aiko prometera que a menina se divertiria muito e ele, enfim, concordou. Com o coração sangrando, arrumou a mala e evitou o choro quando ela se despediu.
Contudo, quando a noite chegou e o lugar na mesa ficou vazio, ele entrou em desespero e só foi acalmado por uma curta ligação que Ryo fez para Sakamoto, a fim de que ouvisse a voz da filha.
Assim, dormiu um pouco mais tranquilo. Na manhã do dia seguinte, levantou-se mais animado. Percebeu que, afinal de contas, passear na casa dos tios fazia parte da vida familiar de qualquer criança, e era isso que, finalmente, ele estava disponibilizando a ela: uma vida normal.
Ryo já havia se levantado. Ele sempre acordava cedo para ir trabalhar. Como, pela hora, Satoshi devia estar tomando café da manhã, arrumou-se rapidamente e foi em direção à sala de jantar, desejoso de lhe dar um beijo, antes do amado sair.
— Eu vou me casar — ouviu a voz, ainda do corredor.
Repentinamente, tudo parecia igual aos anos que ficaram para trás.
Estava no mesmo lugar que, outrora, ouvira Ryo contando a Tadao do noivado com a filha de algum comerciante amigo. Soube, ali, entre aquelas paredes, o que Ryo pensava dele, e de como planejava enviá-lo para Aiko, que havia perdido tudo nos bombardeios.
O coração doeu e a boca secou. As pernas travaram e ele permaneceu estático, mal conseguindo respirar.
— É mesmo? — O tom de Tadao pareceu animado, diferente do antigo.
— Shiro não quer, acha polêmico e acredita que possa prejudicar Miya. Mas será algo privado, apenas para nossos amigos. Falei com Miya e ela adorou a ideia.
— E como estão aqueles grupos que você está financiando para que a união estável entre pessoas do mesmo sexo seja aprovado no parlamento?
Ouviu o suspiro resignado.
— Talvez haja um dia que amar alguém como eu amo Shiro não seja um erro tão grande aos olhos da sociedade. Infelizmente, não será na nossa geração. — Depois, um riso frouxo. — Mas se aprovarem em qualquer lugar do mundo, enfiarei Shiro dentro de um avião na mesma hora e vamos para lá.
As palavras, enfim, pareceram trazer novamente ar aos pulmões de Kazue. Ele quase riu, mas as lágrimas de alívio despencaram antes da risada chegar aos lábios. Secando-as rapidamente, voltou a caminhar, entrando na sala de jantar onde Ryo lanchava.
Após o cumprimento habitual, Tadao deixou discretamente o ambiente. Shiro voltou-se para o amante e sorriu, sem conseguir esconder a felicidade.
— O que foi? — as sobrancelhas de Ryo ergueram-se, inquisidoras.
— Você voltará para casa cedo hoje?
— Tenho uma reunião mais tarde…
— Cancele — pediu. — Preciso que volte cedo.
Ryo mordeu o pão, enquanto tentava decifrar o que havia de especial naqueles olhos negros.
— Está bem — concordou, por fim.
Antes de sair, ainda recebeu um doce beijo nos lábios, promessa de muitas delícias.
***
Ryo Satoshi entrou na sua residência estranhando ser recebido pela escuridão e o silêncio. Afinal de contas, desde que sua família voltara para ele, aquela casa estava sempre repleta de sons e iluminação.
Largou a pasta negra com documentos em cima do sofá, e foi em busca de Shiro. Enquanto retirava o casaco e afrouxava a gravata, ele pensou no fornecedor que pareceu irritado pelo cancelamento da reunião. Contudo, a prioridade era sempre Shiromiya. Então, pouco se importou pelo tom raivoso e desligou o telefone sem pestanejar.
— Shiro! — gritou, buscando-o em cada canto.
Seguiu até o quarto. A escuridão também se fazia presente ali, e ele ligou o abajur enquanto atirava o casaco sobre a cama, e abria a camisa.
Não se enervou por Kazue ter sumido, pois o amante poderia estar apenas colocando as galinhas para dormir. Porém, antes de voltar-se para o banheiro, para tomar uma ducha, ouviu o som melodioso de um koto.
Só então notou que o toca-discos havia sido ligado.
Girou todo o corpo em direção ao som, quando percebeu Shiro, de quimono floral, parado estrategicamente nas sombras, ao lado da cortina.
— Kazue… — murmurou.
Conforme o som foi aumentando, os passos de Shiromiya vieram em sua direção. Seu corpo seguia o ritmo cadenciado, e Ryo perdeu as forças. Sentou-se na cama, num misto de excitação e saudosismo.
Sempre sonhou que ele dançasse para ele… apenas para ele.
Enquanto a música prosseguia, reconheceu os passos perfeitos da antiga falsa gueixa de Aiko. Ali, estava ela. Sem a maquiagem excessiva, sem a peruca, e sem a compostura feminina. Era um homem dançando para ele e era o homem que ele amava.
Sorriu quando o ritmo aumentou. Era quase como fazer amor com os olhos. Shiro sempre conseguiu mover as mãos e os pés de uma forma completamente oposta, algo que só os melhores saberiam fazer.
Naquele momento, as ancas moveram como se estivessem sendo invadidas e Ryo se inflamou.
Antes mesmo da música se findar, ele já avançava contra o outro, puxando-o para si, agarrando seus cabelos, lambendo cada pedaço de pele que encontrou pelo caminho.
— Você é — murmurou, contra os lábios do outro — a pessoa mais perfeita que Kami-sama já criou.
Shiromiya riu.
— E ele criou você especialmente para mim — pareceu extasiado pelas palavras. — Sou muito afortunado, Kazue — afirmou.
— É mesmo — o outro gargalhou, concordando.
Encararam-se. Repentinamente, em silêncio.
— Diga que me ama — Ryo mandou.
— Novamente? Falo isso todos os dias.
— Sempre — retrucou. — Quero ouvir sempre.
O sorriso bonito voltou, ainda mais firme.
— Então faça por merecer as palavras — provocou, esfregando o quadril na elevação abaixo do ventre.
No final daquela noite, Shiromiya havia confessado tantas vezes seu amor, que Ryo achou provável que as palavras jamais findariam.
Quando dormiram, aconchegaram-se um no outro.
Na linha do destino, os deuses sorriram perante sua façanha. Aquelas duas almas gêmeas, destinadas a ficarem juntas, haviam enfim se encontrado. Era uma busca que se finalizava. Havia outras a se cumprir.
Os ciclos da vida nunca terminavam.